ESTE HOMEM.


I

E então um deus falou:
Este é um homem condenado
Por todos seus sonhos,
E deveria, mas nunca
Será redimido
Ou conhecerá a salvação
Porque conheceu o fogo
E é, em sua carne, o fogo
Que queima mas não destrói
Como a música desesperada
O instinto incontrolável e suicida
De todos os sonhos condenados,

Este homem
É um ritual autofágico
De tambores
Dos trompetes estranhamente silenciosos
Em seus sons diabólicos,
A mágica do inferno
No cérebro, na alma, nos ouvidos
E as perdições humanas e suas cadeias
E as cordas dos instrumentos e as flores –

Este homem
Estará para sempre condenado, não existe caminho
Por onde lhe escape o destino
E que o proteja das profecias –

Talvez alguém lhes diga
Quem era este homem.

II

E o outro deus disse:

Este homem está salvo
Porque foi tão esmagado
E tão repleto e consciente
Dos sons, das tristezas, do fogo, das condenações e das mágicas
(Como o funeral de um anjo)
Que ele irá conquistar –
E fará explodir
Todos os trompetes, tambores, peias,
Destinos e profecias,
Que será salvo
Como os fios de ouro
Que costuram o céu
E tecem as flores
E os sonhos da terra,
Como foi prometido
A cada um dos homens.

Algum dia
Talvez alguém
Venha lhes dizer.

III

Agora eu lhes revelarei:

Este era o seu segredo, como uma herança – e ele nada jamais revelou sobre isto. Em voz alta: escapar é fugir. Algumas vezes, ficar é também um esforço humano para continuar fugindo. Ele conhecia bem o inferno e ainda os seus segredos. Jamais sonhou com a salvação enquanto esteve condenado. Tentou perceber todos os seres humanos e dissecar a saga da humanidade. Percorreu todas as florestas de sua infância, andou por dentro das árvores, n coração das flores, no mistério das abelhas. Aliás, sempre lhe fascinaram os mistérios e as magias. Mas, veja bem, nunca preocupado ou imaginando o que  fosse a salvação porque ele tinha consciência de que nenhum ser humano merece salvar-se. Nenhuma carne merece salvar-se. Nenhum espírito pode ser salvo – a mente humana não aprende a salvação. Nenhum destino foi preparado para a salvação. Porque salvação, desde que é um conceito sobrenatural, está além da carne e do espírito, os quais de certa forma iguais a ela, também são ficções humanas. Conheci este homem profundamente. E agora posso informar-lhes: ele sempre tentou. Qualquer coisa poderia acontecer: não lhe interessava. Conscientemente. O que viu o tempo todo foi exatamente o que ele disse e no que sempre acreditou: nada. Desde que nasceu por algum inexplicável acidente ou milagre, como, aliás, todos os de sua espécie, ele não compreende. Tudo que existe são apenas palavras – e nenhuma palavra faz sentido quando se trata da vida real. A salvação não é um objetivo da vida, porque a vida, quando se inicia, já está de todos perdida. E isso, este homem sabia. Não o atormentava salvar-se ou ser condenado. Mas a morte.

Isto eu devo lhes dizer.

Rio, 20 março, 96 – Álvares PachecoSolstício de Inverno

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