O MÍMICO.
O que faz com que um ser queira
se tornar eterno? Qual medo interno de esquecimento terreno carrega dentro de
si lutando tão fortemente para não passar por este mundo despercebido quando
sua hora final chegar? Que necessidade é essa de transformar a hora final em um
ponto de começo?
Enrique Vila-Matas diz que: “Todos
desejamos resgatar por intermédio da memória cada fragmento de vida que
subitamente nos volta, por mais indigno, por mais doloroso que seja. E a única
maneira de fazê-lo é fixá-lo com a escrita. A literatura, por mais que nos
apaixone negá-la, permite resgatar do esquecimento tudo isso sobre o que o
olhar contemporâneo, cada dia mais imoral, pretende deslizar com a mais
absoluta indiferença”.
Talvez possa ser isso que levou
um homem chamado Vidiadhar Surajprasad
Naipaul a escrever. Talvez. Mas só pode-se dizer talvez, porque os
mistérios que este homem que se tornou de alguns anos para cá, um de meus
escritores prediletos, são muitos. Gigantes e inimagináveis mistérios. E talvez
por saber que seja assim, ele mesmo se disponibiliza a ser um “desvendador” dos
mistérios do homem. Os mistérios e segredos que carregamos dentro de nós
diariamente, fingindo sorriso e pensando que ninguém seria capaz de descobrir,
quando basta somente um olhar para que alguém descubra o que tão sigilosamente
carregamos dentro de nós. Naipaul é
um desses homens que carregam um olhar possível de desvendar os mistérios, um
olhar de um condenado até o final da vida, que consegue ver o desvalido, o
humilhado, o oprimimido, e é capaz de lançar uma frase como “Odeiem a opressão, mas temam os oprimidos.”,
na frase que tão bem poderia ser usada para descrever as obras de Michael Haneke, quanto para descrever
qualquer um de nós. E ainda assim, criando uma frase dessas, não romantiza a
perca.
Filho de imigrantes indianos, Vidiadhar Surajprasad Naipaul se tornou
V. S. Naipaul, um dos, que se pode
dizer sem medo, grandes romancistas dos tempos atuais. Naipaul foi morar na
Inglaterra ainda adolescente e dizem, dês de 1954 a única profissão da qual se
dedicou realmente foi a escrita. E aí está um homem no meio de tantos ditos
escritores, aí está um homem que pode dizer que é realmente um escritor. E mesmo
que não ganhasse a vida com o dinheiro de seus livros - coisa muito comum no
meio literário, mesmo assim aí está um homem que pode dizer que é realmente um
escritor.
Escrevendo sobre o fim dos
sonhos, homens inacabados que constroem civilizações que sempre serão
inacabadas, Naipaul escreve sobre o homem aflito e angustiado, humilhado pela
própria condição de ter nascido para não ser aquilo que todos esperam que
sejam. Naipaul escreve sobre a própria humilhação, sem criar romantismos nem
muito menos heroísmos. Nos textos de Naipaul não existe espaço para um herói, e
isso é louvável em um mundo criado por figuras idiotas que devem servir de
exemplo para outras pessoas idiotas. Assim como disse Fernando Moreira Salles: “Para
Naipaul não há um Admirável Mundo Novo despertando das cinzas do colonialismo.
As marcas da dominação deixaram feridas abertas na consciência, nas vontades,
na determinação de reencontrar uma identidade.” E é sobre um homem que
tenta recriar sua identidade, uma identidade talvez nunca encontrada por ter
sempre nascida perdida, que Naipaul constrói um personagem que talvez seja ele
próprio, ou cada um de nós, vivendo em um mundo estranho, em uma sociedade
estranha, dentro de relações estranhas, sempre rodeado de pessoas que sempre serão
estranhas.
“Os Mímicos”, romance escrito entre agosto de 1964 e julho de 1966 e
publicado em 1967, traz a estória de um homem que poderia ser descrito como “sem
nome”, e suas reflexões sobre o outro, sobre a incapacidade de ser compreendido
e compreender o outro quando se propõe a escrever a história da própria vida.
Um homem e suas mazelas naturais, falhas, perdas, e vazios, mas que nem em um
momento é narrado como coisa gratuita. É simplesmente narrado, contado a
estória de um perdido tentando encontrar na fuga de sua terra de origem, a fuga
de sua nacionalidade, a fuga de sua condição de filho, irmão, amigo ou o que
mais estiver acoplado a um ser. E é a partir disso que revela seu olhar do
mundo para o mundo. Esse olhar talvez seja o do próprio Naipaul. Mas somente
pode ser dito que talvez seja, porque como já disse, muitos são os mistérios
que o escritor contém, mesmo que em seu trabalho ele se disponha a desvendar o
que for possível, e guardando outra parte que possa ser importante para sua
formação.
Meu prazer em reler este livro
descoberto e lido anos atrás foi bem maior que a primeira vez que o li. Mesmo
tendo sido um livro relido praticamente todo dentro de ônibus barulhentos e
lotados onde além de ter que lutar contra os barulhos, tinha que lutar contra o
sono matinal que me acompanha o dia inteiro, mesmo assim, o espanto em que me
encontrei em “Os Mímicos” foi bem maior do que a primeira vez que o li. E penso
que este livro seja um daqueles que daqui a 20 anos, ou mais tempo, ainda me
criará espanto e surpresa e prazer quando reler suas frases.
Os Mímicos – The Mimic Men
Tradução: Paulo Henrique Britto
Editora: Companhia das Letras
319 páginas
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