A SOLIDÃO; POR LYDIA DAVIS.



O PEIXE

Ela olha atentamente para o peixe, pensando em certos erros irremediáveis que cometeu naquele dia. Agora o peixe foi cozido e ela está sozinha com ele. O peixe é para ela – não há mais ninguém na casa. Mas ela teve um dia cheio de aborrecimentos. Como pode comer esse peixe, que está esfriando sobre um tampo de mármore? E, no entanto, o peixe, também ele, imóvel como está, e desguarnecido de seus ossos, despojado de sua pele prateada, nunca esteve tão completamente só como está agora: violado de maneira definitiva e observado por essa mulher de olhar cansado, que cometeu o último erro de seu dia e fez isso com ele.

A MÃE


A menina escreveu um conto. “Mas seria muito melhor se você escrevesse um romance”, disse a mãe. A menina construiu uma casinha de boneca. “Seria muito melhor se fosse uma casa de verdade”, disse a mãe. A menina fez um pequeno travesseiro para o pai. “Seria mais útil se fosse uma colcha”, disse a mãe. A menina cavou um buraquinho no jardim. “Seria muito melhor se tivesse cavado um buraco grande”, disse a mãe. A menina cavou um buraco grande e foi dormir dentro dele. “Seria muito melhor se você dormisse para sempre”, disse a mãe.

AMOR SEGURO


Ela estava apaixonada pelo pediatra do filho. Sozinha, numa região rural – quem poderia criticá-la?
Naquele amor havia um componente de grande paixão. Era também uma coisa segura. O homem estava do outro lado de uma barreira. Entre ela e ele: a criança sobre a mesa de exame, o próprio consultório, a equipe, a esposa dele, o marido dela, o estetoscópio dele, a barba dele, os seios dela, os óculos dele, os óculos dela etc.

NOSSA GENTILEZA


Sonhamos em ser muito gentis com todo o mundo. Mas aí não somos nem um pouco gentis com o próprio marido, a pessoa que está mais ao alcance de nossa mão. Mas aí achamos que ele está nos impedindo de ser gentis com todo o mundo. Porque ele não quer que a gente conheça aquelas outras pessoas, é o que a gente pensa! Ele prefere que a gente fique aqui, na nossa própria casa. Ele diz que o carro é velho. A gente sabe que na verdade ele prefere que a gente só trave conhecimento com um número limitado de pessoas no mundo, ele é assim. O que ele diz é que o carro não poderia nos levar muito longe. A gente sabe que ele prefere que a gente cuide de nossa própria casa e de nossa própria família. Nossa casa não está limpa, não totalmente limpa. Nossa família não está totalmente limpa. A gente acha que o carro daria conta do recado perfeitamente. Mas ele acha que a gente pode estar querendo sair e ser gentil com outras pessoas só porque a gente prefere não estar em casa, porque a gente prefere não se esforçar em ser gentil só com essas três pessoas – entre tantas pessoas que existem no mundo exatamente as três pessoas mais difíceis –, embora a gente possa facilmente ser gentil com muitas outras pessoas, como as que a gente encontra nas lojas aonde vamos, porque lá, diz ele, é seguro ir com nosso carro.

OS ATORES

Em nossa cidade existe um ator, H. – homem alto, arrojado, fogoso – que lota o teatro sem a menor dificuldade quando faz o papel de Otelo e que causa grande alvoroço entre as mulheres daqui. Ele é muito bonito, quando comparado aos outros homens, embora seu nariz seja um pouco largo e seu tronco seja algo curto para sua altura. Sua atuação é dura e inflexível, os gestos são obviamente decorados e mecânicos e, no entanto, sua voz é suficientemente forte para que a gente esqueça tudo isso. Nas noites em que não consegue sair da cama por causa de alguma doença ou intoxicação – e isso acontece com mais frequência do que seria de imaginar – o papel é representado por J., seu substituto. Só que J. é pálido e pequeno, completamente inadequado para o papel do Mouro; suas pernas tremem quando ele entra no palco e encara as numerosas poltronas vazias. Sua voz mal consegue ultrapassar as primeiras fileiras de assentos e as mãos miúdas se agitam em vão no ar enfumaçado. Quando olhamos para ele, tudo o que sentimos é pena e irritação, mais nada, porém no final da peça nos damos conta de que estamos inexplicavelmente comovidos, como se, a despeito de nós mesmos, alguma coisa tímida e triste no personagem Otelo nos tivesse sido transmitida. Mas os maneirismos e a habilidade de H. e de J. – que analisamos em minúcias quando nos visitamos uns aos outros de tarde e sobre os quais refletimos a fundo mesmo quando estamos sozinhos, depois do jantar – de repente parecem insignificantes quando o grande Sparr vem lá da cidade grande e nos brinda com uma verdadeira encenação de Otelo. Aí ficamos tão fascinados, tão exauridos de emoção, que é impossível falar do que sentimos. Ficamos quase agradecidos quando ele vai embora e nos deixa de novo com H. e J., por mais imperfeitos que sejam, porque são familiares e confortáveis, como nossa própria gente.

O QUE EU SINTO
Hoje em dia tento dizer a mim mesma que o que eu sinto não é muito importante. Agora já li isso em muitos livros: o que sinto é importante, mas não é o centro de tudo. Pode ser até que eu entenda essa ideia, mas não acredito nela com convicção suficiente para orientar minhas ações em função dela. Gostaria de acreditar nisso com mais convicção.

Que alívio seria para mim. Não teria mais de ficar pensando o tempo todo naquilo que sinto e tentando controlar esse impulso, com todas as implicações e consequências que isso acarreta. Eu não teria de ficar tentando me sentir melhor o tempo todo. Na verdade, se eu não acreditasse que o que eu sinto é tão importante, na certa eu nem sequer me sentiria tão mal e não seria tão difícil me sentir melhor. Eu não teria de dizer: Ah, me sinto horrível, parece que cheguei ao fim, aqui nesta sala escura, tarde da noite, com a rua escura lá fora, sob a luz dos postes, estou tão sozinha, todo mundo em casa está dormindo, não há nenhum consolo em parte alguma, só eu sozinha e mais nada aqui embaixo, nunca vou me acalmar o suficiente para dormir, não vou dormir nunca, nunca vou ser capaz de chegar até o dia seguinte, não consigo continuar, não consigo de jeito nenhum, não aguento viver, nem sequer até o próximo minuto.

Se eu acreditasse que o que eu sentia não era o centro de tudo, então não seria o centro de tudo, seria apenas mais uma entre muitas outras coisas, à margem, e eu seria capaz de ver e prestar atenção a outras coisas que eram igualmente importantes e desse modo eu teria algum alívio.

Mas é curioso como você pode ver que uma ideia é absolutamente verdadeira e correta e mesmo assim não acreditar com convicção suficiente para orientar suas ações por ela. Assim eu ajo como se meus sentimentos fossem o centro de tudo e eles ainda me levam a acabar sozinha diante da janela da sala, tarde da noite. O diferente agora é que tenho esta ideia: tenho a ideia de que em breve não vou mais acreditar que meus sentimentos são o centro de tudo. Isso é um verdadeiro consolo para mim, porque desse jeito perdemos a esperança de continuar, mas ao mesmo tempo dizemos para nós mesmos que nosso desespero talvez não seja muito importante; então ou a gente para de se desesperar, ou continua a se desesperar, mas ao mesmo tempo começa a ver como nosso desespero também pode se deslocar para a margem, uma coisa entre tantas outras.
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6 dos contos de Lydia Davis que a Revista Piauí publicou. Escritora ainda inédita aqui no Brasil em livro, também era inédita para mim, e tenho que dizer que fiquei impressionado com a literatura dessa mulher que usa dessa matéria prima que é a vida, a solidão nossa de cada dia na vida, para produzir uma literatura. Saiu na revista que ano passado foi lançado um livro de 733 páginas com seus contos reunidos. Esperar que este seja traduzido e chegue aqui nessas bandas é algo difícil. Mas bem que poderiam lançar alguma coisa. Para ler mais alguns contos de Lydia, aqui e aqui.

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