O INQUISIDOR.

INQUISIÇÃO

Não percebemos os fatos como virtudes e aí está o problema. A morte é algo indissolúvel. Para nossa raça a morte sempre surge precisa, enigmática, vital. A vida para nós é uma aliada fútil. Morrer para nós chega a ser uma imposição. Roemos sem desejar, mas voluntariamente, um osso que é a vida. A medula só pode ser a morte. A vida é uma espécie de brisa sempre prestes a paralisar-se. A morte é a planície por onde a brisa corre.”

- Foi o senhor quem escreveu isto? – amassando ligeiramente o papel.

Não respondeu. Os olhos ficaram incrustados de lágrimas. Aquilo era demais. Não queria responder. Mesmo, pensava que não podia. O inquisidor parecia calmo mas queria uma resposta. Prestes a fechar o cerco de todo, ainda parecia pouco cruel no interrogatório.

... Mas eles possuem o sopro eterno. E a injustiça persiste como um pêndulo congelado. É preciso acusá-los. Sua indiferença ultrapassa os limites. A ciência do lado deles nunca atingiu nível tão alto. Bem que eles nos poderiam ajudar. O que nos diferencia dessa minoria é a morte. Nós morremos a qualquer hora, por muitos motivos. Eles através de um dom todo especial permanecem no ócio da eternidade. Segundo a tradição, nossa tradição, somos vítimas de um processo histórico e ecológico, lento e demorado. Irritante...”

- Admita a culpa que será melhor para você. Você sabe muito bem que não possui alternativas.

Continuou com os olhos calados, fixos às rachaduras do ar. Com o pensamento oprimido às paredes do crânio. Era mais uma razão para não responder ao inquisidor. O inquisidor já estava ficando com raiva. Um mortal, um mísero mortal a querer desafiá-lo, e além do mais, com placidez, com silêncio. O inquisidor odiava a contemplação, os grandes vôos dos pensamentos sem tempo. Já nem ele próprio suportava o que fazia. É como se estivesse à beira da última tentativa antes da primeira violência.

- A letra é sua, não é? Foi você quem trabalhou nesse manuscrito. Você sabe que eu sei que foi você. Você sabe que eu só lhe faço essas perguntas por mera praxe, por mera paciência. Nós sabemos quem é você, um mortal não acostumado a ser mortal. Revoltado com sua condição humana.

Mas você sabe que nós não temos culpa. Que o culpado é o acaso, o acaso é que não lhes deu opção certa. Nós apenas fomos favorecidos pela sorte e não temos culpa alguma de vocês serem mortais. Não lhes oprimimos econômica nem socialmente. A sociedade de vocês é separada da nossa. Somos dois estados independentes que até hoje não se preocupavam um com o outro. Mas agora você veio com essa carta inteiramente mentirosa, cheia de calúnias. Se preocupou conosco e isso está errado.

A existência deles não tem definição. Não é vida porque a vida é mortal, limitada. Com os séculos eles vão existindo, não têm tradição nem história escrita. Nós, muito pelo contrario. Precisamos disso. De tradição, de filhos, descendentes, do passado, dos antepassados. Em síntese, dependemos do que já aconteceu e do que irá acontecer. É estranho mas essa casta monástica de imortais vive somente em função do que está acontecendo. É um paradoxo, sabemos. Mas o que podemos fazer?”

- O silêncio denuncia o sim. Foi você. E o incrível é que até agora você foi o único. Os outros vivem o máximo que podem e com total intensidade. Têm seus filhos, suas mulheres, seus palácios, seus carros, dinheiro, ouro, e não se queixam. Vivem, apenas. Eles, homens e mulheres, seus iguais, vivem no espaço apropriado que a vida lhes dá. Você não, vive como eles mas não se conforma. Quer devorar o que cinicamente chama de verdade.

Tinha que continuar daquela forma. A voz era uma sensação maravilhante. Gostava de falar, de discursar. Mas hoje. Preferia permanecer brilhante dentro de seu silêncio, no interior do espaço imaginário ocupado pelo seu silêncio. Que o inquisidor se preocupasse em falar o dia todo. Que usasse da violência para obter uma resposta, ou antes, sua voz. Mas tudo isso seria feito contra ele a quilômetros de distância, porque ele não estaria ali.

Saúde não é preocupação para quem não tem definição. Nem o mal liquidante da velhice e do tempo passado em peso. Vivemos na lama. Molduras, invólucros para uma espécie de lama. Somos cheios dessa lama vermelha, da qual eles não precisam. Ela habita nossos corpos e pouco a pouco nos leva para a morte.”

- Por que você luta por essas coisas. É inacreditável que você trate de perder tempo com essas coisas. Que continue falando de nossa culpabilidade. Nossa culpabilidade é inexistente.

Você sabe disso ou simplesmente não quer saber. É lamentável esse seu procedimento. Atrasado em suas opiniões. Suas idéias são desmembráveis, mas você as utiliza como meio de transporte até nós. Ora, isso nos incomoda. E se nos incomoda nós somos obrigados a desfazer você de seu grupo, de seu país. E aqui somos obrigados a lhe interrogar. Portanto, queremos que você se esqueça de nós e que cuide de resolver seus problemas sem nos usar como chave...

Os olhos do inquisidor estavam arregalados de raiva. Era a primeira vez que tinha raiva. Mas não usou da violência. Embora odiasse a lágrima desses mortais, não usou da força. Nunca antes usara da força contra ninguém. Era um inquisidor, mas nunca em todas as centenas de anos de seu serviço inquirira ninguém. Portanto, não vivia de impulsos.

Muitos deles possuem milhares de anos e não se cansam de viver. Antes querem viver mais, sempre mais. Suas famílias são pequenas, limitadas em demasia. Vivem isolados nos campos do Norte.”

-Como é? Ficará mudo até o fim?

E eles eram uma maioria. Uma maioria silenciosa. Os mortais. E então um deles resolveu escrever aquela carta. Para quê? E agora estava trabalhando pela primeira vez, em milhares de anos. Inquirindo alguém e logo um rico mortal, orgulhoso e calado, com lágrimas nos olhos. Na manhã seguinte irá pedir demissão do emprego. O contrato não mencionava gestos nem situações. Era uma irregularidade inaceitável. Estava inquirindo alguém! No emprego de um inquisidor não podiam acontecer coisas desse tipo. Haveria de reclamar contra a má qualidade daquela burocracia.

Como disse, a maior arma deles é a indiferença e o isolamento. Para eles somos uma outra civilização cujo único legado é a morte. Uma raça diversa das noções da razão. Uma raça em que o tempo voa e passa mais depressa. Neles, nos imortais, o tempo se deposita e vai rumando junto com eles sem nenhum contato, sem nenhuma interferência. Nós somos obscenos para eles. Somos seres inteiramente presos ao tempo, isto é, temporários, que além de procriarem se dedicam a algo chamado de sobrevivência. Não mantemos como eles o tempo preso dentro de si.”

-Olhe. Compreenda que eu não estou aqui para ouvir o seu silêncio. Preciso sair para enviar o meu pedido de demissão do cargo. Você está trazendo sensações novas. Sensações de aborrecimento que eu nunca havia experimentado antes.

Nunca havia condenado ninguém porque nunca a ninguém julgara. Nunca falar com os mortais. E a primeira vez que falava com um deles era logo para ter raiva. Era a primeira vez que tentava falar com um deles. Os mortais, desde que tinha alguns anos de existência, lhe inspiraram nojo. Nunca brincara com nenhuma criança mortal. Elas tão ricas, tão cheias de brinquedos. Tinham ilusões, choravam por qualquer dor, brigavam por qualquer motivo. Bem, isso era o que lhe diziam. E acreditava. E hoje tinha certeza que possuía a razão. Hoje, na idade limite e estacionária. Os mortais tinham carne, e a carne é fraca.

Por nós seria melhor que não existíssemos. Estamos entregues ao que der e vier. Praticamos violência, possuímos ódio, ferimos e matamos nossos semelhantes. Mas temos algo chamado consciência. Isso, os eternos não possuem. Tristeza, felicidade, melancolia, medo, dor, nada disso eles possuem de fato. O único dom que eles possuem é o da eternidade.”

-Olhe, o senhor deve me responder. O senhor tem que me responder, imediatamente. Não tenho mais tempo para gastar com você. Lá fora o tempo está ótimo. Responda afirmativamente à minha pergunta e vá-se embora. Não registrarei o caso.

Não registrará o caso. Não pode perder mais tempo. Essas frases giravam como sonhos em torno dele. Mas seus pensamentos, seus juízos, eram nesses momentos como passos perdidos na madrugada. A memória dele estava fraca. Era melhor ficar calado, sem nenhuma piedade para com o inquisidor, porque as palavras transportam os homens através do tempo. O inquisidor não tem habilidades. Seus “dias de vida” estavam repletos de uma santa paz e uma suave burocracia de serviço. Por que chorava? O que sentia? Não conseguia captar o sentido de seus pensamentos naqueles instantes. E adormeceu de lágrimas nos olhos.

A memória deles se sedimenta. A nossa nos escapa. Nós nos esquecemos das coisas. Nós temos medo e pavor da morte. Eles têm nojo de quem morre, se envergonham de viver ao nosso lado. A morte para eles é pornográfica, abjeta. Só próprias à seres irracionais e incompreensível para entes humanos. A morte para eles é um gesto feio, obsceno e nem por isso tentam apagá-la da face da terra. Qualquer dia nos exterminarão, mais cedo ou mais tarde. Porque são onipresentes e desejam comandar o universo.”

- Como você teve coragem de escrever essas calúnias? Onde está sua pele, seus sentimentos, sua humildade?

... ou então nos impõem os deuses, para isso edificarão muitos templos.”

Saiu correndo da sala. Lá fora ao sol girava em busca de um contato com o horizonte. Não fora ele que fizera a carta. Mas bem que gostaria de ter feito. O inquisidor. O inquisidor fechara a porta, mas continuava a observá-lo da janela.

E que este manuscrito passe de mão em mão”.

____

Saiu conto “novo” do Carlos Emílio lá no Cronópios. Coloco aqui já que recebi por e-mail, mas lá você pode ler nas páginas originais scaneadas. O conto é do livro “Solário”, escrito antes dos 14 anos de Emílio, que continua até então fazendo literatura espacial e cósmica nesta Fortaleza.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

SUGAR.